domingo, 28 de março de 2010

Precisosa

Série “Por que mereceu o Oscar?” By Ceci Alves

http://www.portalibahia.com.br/blogs/cinema/?p=463#comments

Como promessa é dívida e eu já andei sumida demais, volto para o convívio dos meus com a série Por que mereceu o Oscar, para comentar os filmes que ganharam a estatueta em 2010, fazendo uma análise geral sobre a película e debruçando-se especificamente sobre a categoria que tenha lhe dado a premiação.

Também gostaria de receber críticas com este perfil descrito acima. As melhores serão publicadas! Mãos às teclas, amigos cinéfilos!

O filme que abre a série é Preciosa – Uma História de Esperança, que concorria ao Oscar de Melhor Diretor (Lee Daniels), Melhor Atriz (Gabourey Sidibe), Melhor Filme, Melhor Montagem (Joe Klotz), Melhor Atriz Coadjuvante (Mo’Nique) e Melhor Roteiro Adaptado (Geoffrey Fletcher), levando os dois últimos. Desestabilizador e inquietante, o filme é um soco na boca do estômago da audiência não só pela sua história forte – em linhas gerais, Claireece “Precious” Jones (Gabourey Sidibe), a Preciosa do título, é uma menina de 16 anos está na segunda gravidez por conta dos abusos que sofre de seu pai desde os três anos de idade –, mas por falar a cada um de nós sobre a miséria humana que, tal areia movediça, parece sugar Preciosa a cada passo para fora que ela tenta dar.
Miséria que tememos, à qual temos repulsa, mas que parece sempre estar à espreita da espécie humana, pronta para nos tragar em qualquer demonstração de fraqueza, na primeira curva de nossas incertezas. Miséria que animaliza, com a qual não queremos ter nenhuma parte, que nos faz questionar o sentimento de sermos semelhantes àqueles que estão nela.

E Preciosa parece ter sido marcada desde o nascimento por esta miséria. Nascida no meio da escória, tem todos os elementos que a levam à exclusão: é negra (sim, a cor da pele na qual se nasce ainda é, em pleno século XXI, elemento de exclusão), gorda, pobre e sem oportunidades. Além de ser violentada contumaz e sistematicamente pelo pai – que é apresentado no filme, pela habilidosa direção de Daniels, como um fantasma quase sem rosto –, vive debaixo do julgo de uma mãe extremamente violenta, capaz das piores atrocidades com o ser a quem ela deu a luz, e que, ainda por cima, também abusa dela.

Mas Preciosa sonha. Mesmo diante das situações mais horrendas e indizíveis, ela se aparta do mundo cão em que vive e sonha com um universo que gostaria de almejar. Curiosamente, o mundo dos sonhos de Preciosa não é um mundo politicamente correto, militante, utópico.

Não. As fantasias de Preciosa fazem parte da mesma engrenagem que cava o abismo intransponível entre a terra das oportunidades e a realidade do dia-a-dia. É um mundo de riqueza, onde ela é uma celebridade coberta de ouro, por vezes é uma garota branca, e sempre com um príncipe encantado lindo do lado. Um mundo que é apresentado à ela e do qual ela está apartada irremediavelmente. Ao qual ela só pode ter acesso sonhando.

E são seus sonhos que, em última instância, fazem com que ela consiga romper o ciclo da miséria que a envolve. Sonhando em sair daquele ciclo vicioso ao qual estaria condenada, ela aceita ir para uma escola alternativa, ao ser suspensa da sua escola por conta da segunda gravidez. A partir daí, a esperança de que a educação a tire de onde está a faz prosseguir por um caminho de descobertas, não menos tortuoso e que traz surpresas desagradáveis até o fim, mas o qual ela decide trilhar com firmeza e determinação.

E aí é que está o pulo do gato da direção de Daniels: a intangibilidade dos sonhos, a crueza da realidade, a sensação de gastura com a violência e até o constrangimento com situações absurdas, todos estes sentimentos são quase palpáveis através da mise-en-scène que ele engendra. A câmera nos coloca como um espectador próximo àquela realidade, com a qual não queremos nos imiscuir.

Tudo nos transporta para bem perto: o olhar instável, quase documental, que mostra sem deixar ver tudo, que corrige sua trajetória em pleno desenrolar da cena; os planos fechados demais nos rostos, como em um desses telejornais sensacionalistas; os desfocados e os efeitos utilizados para a obliteração da realidade pelas fantasias de Preciosa; além do trabalho de som que também faz esta ponte entre o real insuportável e a fantasia etérea. Por isso o soco no estômago que já seria suficiente pela história parece bem mais dolorido ao final dela.

Mas para que Lee Daniels chegasse a este nível de sofisticação em seu relato, foi fundamental o trabalho de Geoffrey Fletcher adaptando o romance Push, escrito por Sapphire. Transformar em palavras que serão imagens uma obra literária tão densa e cheia de percalços exigiu de Fletcher um cuidado especial para não transpor a barreira do dramalhão, ao mesmo tempo sendo fiel à força do que já havia sido cristalizado na vida e no livro, cortando as gorduras e indo direto ao que interessa.

E a atuação magistral – não menos do que isso – da atriz Mo’Nique também nos coloca em frente ao sentimento de instabilidade diante da falibilidade humana tão revoltantemente flagrante daquela mãe perdida na bestialidade de seu existir. Um papel difícil, que também resvalaria no patético dramalhão ou na inverossimilhança, não houvesse sido tão bem conduzido. Atenção para a sequência em que mãe e filha têm seu acerto de contas. Impossível não se emocionar.

Por todo exposto, Preciosa mereceu, sim, ter ganho os oscars que amealhou. E você, o que acha? Comente!

Abraços!

Rafael Militão disse:
26 de março de 2010 às 11:01
Achei o filme bom, mas só concordo com o oscar de roteiro adaptado. O de atriz coadjuvante deveria ter ido para Mélanie Laurent por Bastardos Inglórios. No própio filme de Preciosa fiquei espantado com a boa atuação de Mariah Carey, em contrapartida Lenny kravitz mostrou que nasceu para ser músico.

Ceci Alves disse:
27 de março de 2010 às 13:23
Comentário feito por George Hora, amigo meu, q pediu para eu postar aqui:
E digo mais, talvez só não tenha levado as outras categorias nas quais foi indicado pelo fato de estar no páreo com dois block busters, mas acredito sim que foram bem merecidos os prêmios que levou, destaque para atuação visceral de Mo’Nique que me levou com sua personagem a experimentar uma montanha russa de sentimentos, de compaixão a ódio ao longo da trama, o fato de seu talento ser mais conhecido como comediante só traz mais respaldo o seu trabalho, em tempo, Preciosa merece até o titulo, pois por pouca essa jóia não seria escondida do grande público e mostra que em meio ao muitas vezes enfadonho cinema atual em especial ao cinema comercial americano sempre podem surgir preciosidades.